Como resolver um triângulo amoroso (ou não)

Vampire Knight Memories foi muito além de Crepúsculo

Como resolver um triângulo amoroso (ou não)

Você às vezes para pra pensar sobre Vampire Knight? Eu penso bastante sobre Vampire Knight. E isso provavelmente não é uma coisa boa.

Vampire Knight foi um dos meus animes de entrada, a época em que você está disposta a engolir quase qualquer coisa que venha do Japão. É o Crepúsculo dos shoujos, um triângulo amoroso com vampiros em que o vampirismo é só um pano de fundo para impulsionar relacionamentos.

E é um dos poucos triângulos dos animes em que os dois caras são igualmente interessantes. O Zero e o Kaname são dois galãs emos deprês com passado sombrio, com a mesma popularidade entre as fãs do mangá.

O Jacob e o Edward também eram igualmente populares com a fanbase, mas a gente sempre soube com quem a Bella ia ficar no final. O Jacob estava lá só pra criar tensão e ter mais coisas para escrever nas sequências. A maioria dos mangás shoujo segue esse padrão, jogando um personagem novo de repente no meio da história na hora que precisou causar conflito.

Vampire Knight não foi assim. Os dois são apresentados no início e ambos estão presente na vida da Yuuki desde a infância. E mesmo o Zero sendo mais mocinho e o Kaname ficando cada vez mais vilão no decorrer da história, nunca fica 100% claro de quem a Yuuki gosta ou com quem ela vai ficar. Porque na real ela gosta dos dois. Ela só é levada a se aproximar de um ou do outro pelos acontecimentos da história.

(E agora eu vou começar com os spoilers.)

Capa do capítulo 26

O enredo em si de Vampire Knight nunca importou muito, com uma enxurrada de política do mundo dos vampiros e antagonistas sem carisma. Eu nem me lembro de como acabou, só dá sensação de alívio de não ter mais que comprar o mangá pra terminar a coleção. Você só pode levar a enrolação de com quem a Yuuki vai ficar até certo ponto.

Mas no fim das contas, ela nunca faz uma escolha. E em vez de dar uma resolução pro triângulo amoroso, com ela escolhendo um dos dois no final, ela fica com ambos em diferentes momentos. A vida eterna vampiresca é conveniente e permite esse poliamor revezado por diferentes circunstâncias sobrenaturais. E de certa forma este final sem resolução pareceu adequado.

Anos depois, foi anunciada uma sequência, Vampire Knight Memories. E meu primeiro pensamento foi: Por quê? Quem quer uma coisa dessas? O que mais essa mulher vai inventar? A história já estava se arrastando há tempos. Talvez a Matsuri Hino tivesse contraído a síndrome de J. K. Rowling, soltando revelações aleatórias de Harry Potter quando ninguém se importa mais. Ou só estava faltando dinheiro pra reforma da cozinha.

Com o mangá terminado, duas adaptações de anime de sucesso e uma fanbase consolidada, eu imagino que o Memories foi o momento em que a Matsuri Hino teve carta branca para fazer o que ela quisesse, agradando a si mesma e aos fãs. Não há mais nada a perder.

Vampire Knight Memories conta o que aconteceu após o final do mangá. Em sequência direta desenvolvendo o relacionamento da Yuuki e do Zero, como em paralelo a vida do Kaname no futuro como humano depois da morte dos dois, acompanhado das duas filhas da Yuuki.

E essa é mais uma interessantíssima resolução do triângulo amoroso. A Yuuki teve tanto uma filha com o Kaname quanto uma filha com o Zero. Uma filha com cada um. Pra que escolher? Você pode escolher os dois. Pra que deixar o Kaname congelado por centenas de anos pra permitir isso? Vampire Knight Memories poderia ter sido um slice of life da rotina poliamorosa do trisal de vampiros e suas duas filhas. Transcenderia a obra original em todos os sentidos.

Capa do capítulo 25

A primeira filha, Ai, é uma princesinha puro-sangue que se apaixona completamente pelo Zero. Seu principal papel no início do mangá é formar um triângulo amoroso com a própria mãe. Quando os dois adultos se resolvem e enfim ficam juntos, ela é obrigada a seguir em frente.

E logo depois, nasce a Ren, meio vampira puro-sangue e meio caçadora de vampiro transformado em vampiro (ou qualquer tipo de genética tão complexa quanto a do Ichigo de Bleach). Com personalidade quieta e calma parecida com a do pai, ela vira o alvo dos mimos da Ai,  superprotetora e apegada à irmãzinha.

‌Vamos recapitular Crepúsculo. Garota adolescente é disputada por um vampiro e um lobisomem. Ela se casa com o vampiro e eles tem uma filha. Então é revelado que a filha é a alma gêmea do lobisomem e o triângulo amoroso se resolve pacificamente com uma desculpa do tipo: “Na verdade, eu nunca gostei de você, Bella, eu só me sentia atraído por você porque o destino nos unia”. Conveniente, não?

Vampire Knight não fez uma palhaçada dessas. Vampire Knight foi muito além.

Conforme a Ren cresce, o relacionamento das duas vai evoluindo, com frases sugestivas no estilo de “Estou com uma vontade incontrolável de sugar o sangue da minha irmã”.

Sugar o sangue de alguém em Vampire Knight é um negócio super íntimo, e não duvido que tenha servido de template para atrocidades como Diabolik Lovers. E se você achou estranho os momentos que o Zero bebe o sangue do Kaname: sim, tinha mesmo uma super tensão sexual ali. Mais um ponto pro trisal.

Então a Ren está receosa com esse desejo, achando que isso vai estragar seu relacionamento com a irmã e a imagem que ela tem. A Ai por outro lado está ansiosa por isso, e só aguarda o momento em que a Ren toma coragem. E é assim que se resolve o terrível triângulo amoroso entre a Yuuki, a Ai e o Zero, com o convenientemente nascimento da Ren que é basicamente o Zero em formato de imouto perdidamente apaixonada pela onee-chan.

Ninguém jamais imaginava que esse seria o plot de Vampire Knight Memories. Ninguém pediu por isso. Ninguém sabia que precisava. Mas a Matsuri Hino foi além das nossas expectativas e fez um ship incestuoso gender bender de Zero e Kaname.

Se você já leu ou assistiu Vampire Knight, incesto não é nenhuma surpresa. Afinal, a Yuuki e o Kaname são irmãos (o Kaname na verdade é um ancestral dos Kuran no corpo do irmão da Yuuki, mas isso aí é outra história). Os pais deles também eram irmãos, o que é uma prática comum entre vampiros sangue-puro para manter a linhagem.

Agora vamos parar um pouco para pensar em como seria a história se todo mundo fosse humano.

O senpai por quem você é apaixonada é seu irmão mais velho. E olha só, é recíproco. Seus pais eram irmãos também, aliás. O problema é que você também gosta do seu irmão adotivo. Mas aí você vai morar com seu irmão biológico e tem uma filha com ele. E seu irmão biológico sai de figura e você pode finalmente viver seu romance com seu irmão adotivo. Só que sua filha com seu irmão biológico também se apaixonou por ele. Mas tudo se resolve, porque depois você tem outra filha, com o irmão adotivo dessa vez. E as duas irmãs se apaixonam e todo mundo vive feliz pra sempre.

Tudo isso só foi possível graças a um simples argumento: Eles são vampiros.

Isso deu a liberdade pra Matsuri Hino criar relacionamentos do jeito que ela quisesse. Sim, eles se parecem exatamente conosco e tem uma estrutura comportamental e social muitíssimo parecida, mas é diferente. Não podemos julgar seus hábitos com nossos olhos humanos.

Tire a humanidade de seus personagens e você pode se utilizar de qualquer tabu de forma razoavelmente aceitável para o público.

Capa do volume 5

Com a existência das filhas, a Matsuri Hino não só tornou a resolução do triângulo amoroso mais ambígua como adicionou camadas de complexidade que se extenderam até as próximas gerações. Tudo isso foi completamente terrível e eu adorei exatamente pelo quão absurdamente longe ela levou as coisas e por como foi possível algum editor falar pra ela que isso era uma boa ideia.

Ainda não sei como foi a recepção dos fãs, mas foi boa o suficiente pro mangá chegar a ser publicado aqui no Brasil. E eu sou uma das pessoas que está colecionando ele. Não me pergunte o por que.

Talvez eu só goste de ver o trem descarrilhando. Talvez eu só queira saber o quão mais longe a Matsuri Hino consegue ir.